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Contos-->O EMBARQUE -- 01/04/2000 - 23:33 (Oswaldo Francisco Martins) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O EMBARQUE
Oswaldo Francisco Martins

Cinco de março de 1976 tivera uma manhã de domingo ensolarado, aliás como é normal acontecer na capital alencarina.

O aeroporto Pinto Martins mais parecia uma rodoviária... Havia um barulho quase infernal, as pessoas pareciam ocupar todos os seus espaços que aparentavam ser muito grandes para mim, habituado a não estar ali e a não utilizar avião como meio de transporte. Lá, todos os oito aprovados no concurso da Petrobrás estavam. A maioria acompanhada de seus familiares, naquele momento muito chorosos, exceto o Júlio, que se passava por mais forte e que havia chegado sozinho para o embarque, provavelmente o primeiro em sua vida. Todos, enfim, pareciam tristes com a partida e era possível observar-se seus olhos inchados e vermelhos em decorrência de lágrimas recém derramadas, mas a raça toda demonstrava medo e ansiedade frente às surpresas que os esperavam em Salvador. Somente para um - o Fernando - surpresas não haveriam de acontecer, de vez que possuía familiares em Salvador, onde há cerca de um ano atrás lá estivera passando férias de final de ano, ocasião que fizera um estágio na RLAM - Refinaria Landulfo Alves, em Mataripe.

Na verdade, rigorosamente, ninguém sabia exatamente o que se ia ao certo fazer em Salvador, senão fazer um curso para assegurar nosso direito de enquanto concursado integrar os quadros da Petrobrás, naquela ocasião considerada uma empresa muito respeitada em Fortaleza e nacionalmente, a exemplo do Banco do Brasil, que era tomado como sonho de emprego de todo cidadão de bem, talvez até por falta de opção do que fazer num estado de economia pobre e, portanto, carente de mão-de-obra especializada. É bem verdade que a tricotomia social já imperava na capital do Ceará naquela ocasião: habitavam miseráveis, que nada tinham e viviam de esmolas, os quais integravam batalhões de retirantes da seca sempre prolongada no esturricado sertão cearense, das estiagens prolongadas, da pobreza genealógica de suas famílias, dos velhos coronéis e seus currais eleitorais, do analfabetismo, da subnutrição aguda, da fome crônica, das doenças, da falta de água, etc., onde poucos mandavam em quase tudo e o restante da população apenas fazia número na obediência aos exploradores da própria raça humana. Vinha, a seguir, uma classe pobre que já se confundia com o estrato social médio num “overlaping” real de desgraças, talvez um dos produtos das ações maléficas impostas pela ditadura militar que aniquilara o ensino público em benefício do particular e tornara a alimentação cara em decorrência da falta dos sistemas baratos de transporte e do controle das verbas a ela destinadas pelos governantes, que polarizavam a sua distribuição de forma a assegurar a manutenção dos mesmos no poder dentro do território brasileiro. Assim, quer dentro do estado do Ceará ou nos quatro cantos do país, predominavam os mais fortes, apadrinhados pelos políticos safados, que se beneficiavam da imposição ditatorial da repressão aos opositores do sistema que fora modelado para combater ideologias comunistas e socialistas, sorrateiramente aproveitado pelos homens do poder econômico, os grandes implementadores da política de empobrecimento do povo, cuja ignorância favorecia a perpetuação daquele poder, resultando na desfavorável elevação dos custos fundamentais de vida das populações de renda inferior, fazendo com que os pobres estabilizassem suas necessidades num patamar menor de consumo e os habitantes de classe média tivessem sua vida retrocedida a ridículos níveis de pobreza não experimentados até então; também, por maior razão, outras necessidades além da educação e da alimentação foram comprometidas, como a saúde e a habitação, apenas servindo para confirmar o empobrecimento ainda maior das classes menos favorecidas economicamente. Por fim, destacava-se a classe alta, a qual sempre se houve muito bem no autoritarismo brasileiro, posto que sempre alimentou as forças governantes e/ou mandantes na intenção explícita de manter suas vantagens, aproveitando-se para tirar proveito da situação imposta à realidade brasileira. Aliás, mesmo hoje, ainda percebemos que a manutenção do status quo dessa gente parece estar renovada, num triste fato que compromete o futuro de qualquer nação como o nosso Brasil.

Mas, voltando à cena da partida da terra alencarina para viver como último anista de Engenharia Química em Salvador - na época falava-se na Bahia!, tínhamos a tristeza da partida acoplada ao medo e à ansiedade pelo que haveríamos de encontrar, de nos depararmos na capital baiana, na universidade (UFBA - Universidade Federal da Bahia) e no curso da Petrobrás (CENPEQ - Curso de Engenharia de Processamento Petroquímico).

Para mim, uma pessoa que desde cedo se ensejara independência e libertação do seio da família - que me criou e tentou moldar-me de conformidade a seus conceitos de moral, de educação, de preconceitos, de intolerâncias, etc. -, numa revelação constante do espírito de retirante, tudo parecia um sonho, que também incluía uma compensação financeira, pois que, naquela época, há dois anos que eu desempenhava a função de monitor (concursado) da cadeira de Cálculo no Instituto de Matemática da Universidade Federal do Ceará, onde recebia uma bolsa de quinhentos cruzeiros por mês, um bocado de dinheiro que me permitia comprar roupas, fazer umas farrinhas na orla de Fortaleza, freqüentando restaurantes como o Alfredo Rei da Peixada e outras coisinhas mais... Tratava-se, por conseguinte, de uma substancial melhora de vida sob a ótica monetária, pois que haveríamos de ganhar cerca de três mil e quinhentos cruzeiros: sete vezes mais! Ademais, o que estaria reservado para mim após a conclusão do Curso de Engenharia Química numa terra carente de espaço para a atuação de engenheiro químico?
Com base no que haveria de perceber de dinheiro como aluno de CENPEQ, não vacilei em adquirir roupas antes da viagem para Salvador, de sorte que esta preocupação com o vestuário deixasse de existir quando da realização do curso e, ainda, eu não revelasse minha identidade de ser com carências materiais, facilmente identificadas nas pessoas mal trajadas. Para tanto, solicitei à minha mãe, Da Ariza, para que concordasse em financiar as roupas que eu entendia ser necessárias para meu uso na Bahia, as quais eu deveria pagar a prestação, devendo remeter o dinheiro de Salvador. Naquela ocasião eu era sabedor que caso eu não pudesse pagar a dívida assumida, certamente minha mãe não haveria de ter dificuldade em quitá-la, visto que deveria situar-se por volta do valor mensal da bolsa concedida pelo convênio Petrobrás - UFBA. Na verdade, eu tivera o cuidado de pensar implicitamente na possibilidade de eu ser eliminado do curso caso sofresse reprovação em qualquer das disciplinas do CENPEQ ou do próprio curso de Engenharia Química, afastando qualquer possibilidade de inadimplência da pequena dívida que, de boca, assumira com minha genitora. Também, não esquecera a dívida relativa à minha conta corrente na bodega do Chico, oriunda da cerveja que ali consumia nos raros e pobres momentos de lazer possíveis para um estudante pobre, que não encontraria crédito em outros estabelecimentos comerciais do centro de Fortaleza, pois que o raio de deslocamento que mantinha em minhas diversões limitava-se às vendas próximas, alcansáveis a pé ou àquelas ao longo da linha do circular, que nos fins de semana utilizava para desfrutar das praias mais distantes daquela que freqüentemente ia caminhando a pé, onde jogava bola e tomava pinga nos botecos próximos à Escola de Aprendizes Marinheiros, na praia do Jacarecanga, ou até mesmo nos botiquins da Praia do Pirambú, que carinhosamente chamávamos de Copacabosta, na tentativa de associarmos a sua beleza à internacionalmente conhecida Praia de Copacabana no Rio de Janeiro, que naquele tempo só conhecíamos através de fotografias publicadas em revistas e jornais ou através de filmes. A beleza das nossas praias residia nos seus paredões de pedras trazidas provavelmente da Serra de Maranguape e naquele de concreto com blocos de pedras da mesma fonte, menos resistente que o primeiro e já em ruínas por não suportar à agressão do feroz mar alencarino, há anos engolindo quilômetros de terra a dentro, salvando-se Fortaleza de ser tragada pelo Atlântico graças aos seus muitos paredões de blocos gigantes de pedras depositados ao longo de sua orla marítima, que já na maré vazante nos permitia a prática de gostosas peladas ao sabor da brisa constante e do escaldante sol cearense. Era nosso salão de festa, de nossos encontros diários durante os períodos de férias escolares, que não exigia nada em troca de nós, deixando-nos livres para acessá-lo, usá-lo, desfrutá-lo, dando-nos muita intimidade a ponto de o chamarmos de você... de nossa praia... de nossa querida praia, eternamente encravada nas cabeças daqueles que viveram aquele tempo singular, irreversível, limpo de maiores preocupações: tempo de sinceridade, talvez de alienação, mas que naquelas praias a liberdade que desfrutávamos era plena.

Pecando no planejamento sobre a nova vida que deveria levar na Bahia, esqueci de computar (e acho que até mesmo de pensar a respeito!) as despesas que haveria de enfrentar para morar, comer, ter roupa lavada, fazer telefonemas interestaduais, etc.. Todavia, os novos custos em minha vida em Salvador não haveriam de ser tão expressivos a ponto de eu não vir a experimentar um ganho substancial em meu poder aquisitivo, coisa que ocorrera de fato.

O vôo era pela Transbrasil, 9:00, e estava no horário e tínhamos informação de estar lotado. No Pinto Martins, todos já haviam passado pela última despedida junto a seus parentes próximos. Naquela ocasião, lembro-me das presenças de minha namorada Bartira, hoje minha esposa, e do saudoso tio Rocha e da querida tia Badinha, que por terem sempre demonstrado enorme preocupação comigo (e também com meus irmãos Larisa e Evandro, mais conhecido por Drico!), não poderiam deixar de estar ali compartilhando de minha pressuposta alegria de vitória, naturalmente por ter passado no concurso para a Petrobrás, o que sem dúvida era motivo de orgulho para os mesmos e para toda a família, conforme colocação do tio Rocha à minha pessoa anos depois daquele momento histórico.

Não fora tão desconfortável aquela partida, pois que a turma de Engenharia Mecânica - do mesmo ano, que terminara o quarto ano em 1975 - perdera quinze alunos, que juntamente conosco da Engenharia Química, também foram aprovados para um outro curso na qualidade de alunos do derradeiro ano de Engenharia Mecânica: o CEMANT - Curso de Engenharia de Manutenção de Equipamentos. Assim, estávamos para embarcar num avião, onde muitos dos passageiros já se conheciam, da convivência na Escola de Engenharia e alguns eu conhecia desde o cursinho do Castelo, o que quebrava um pouco a tensão nervosa, em especial para os marinheiros de primeira viagem, onde eu não me enquadrava, pois que já havia viajado uma única vez para Belém do Pará, ida com volta um ano depois, em 1970/1971, às expensas da minha família. Mas, desta vez, havia ganho a passagem da Petrobrás, mais onze diárias no Hotel Plaza, um quatro estrelas, localizado no corredor da Vitória, hoje transformado em clínica médica na Bahia. Além da estada, haveria de receber uma ajuda de custos de três mil e quinhentos cruzeiros, com a qual deveria providenciar nossas instalações para o curso a que estávamos programados. Por outro lado, por total ignorância da realidade dos aluguéis de imóveis em Salvador, mesmo antes da partida, já projetávamos alugar apartamento, naturalmente com o amigo de maior afinidade, sendo que naquela ocasião já se acentuavam quatro duplas, quais sejam: Gilson e Júlio, Fernando e Augusto César, eu e Amorim e, finalmente, Afonso e Ribamar. Os pares assim colocadas guardavam o grau de entrosamento e afinidade em ordem decrescente, caso houvesse uma escala para quantificá-lo!
Na sala de embarque, algumas conversas entre os futuros cenpequianos e cemantianos. Alguns queriam saber quem chorara na despedida final, no saguão do aeroporto, enquanto tentavam sempre ridicularizar o colega com respeito a fraqueza inconcebível para o macho cearense em despedida de entes queridos: - “quem chora não é homem!”. Aí, todos eram tratados como cearenses, mesmo o Fernando e o Afonso, respectivamente carioca e piauiense. Era tudo parte de uma festa que estava apenas começando, mas que já pintava um clima notório de diferenças entre os colegas. Contudo, o semblante de preocupação e de medo era avistável com a proximidade do momento do embarque, que só foi deflagrado com alguns minutos de atraso. Também, era visível a diferença entre os passageiros da Petrobrás (que se dirigiam à Salvador para cursar o CENPEQ e o CEMANT) e os demais usuários da Transbrasil. Não havia como esconder a primarice dos formandos em engenharia, refletida numa mistura de medo e de ansiedade, de falta de experiência em vôos domésticos pelo motivo óbvio da própria condição financeira sofrível da maioria dos estudantes ali presentes.

Havia orgulho estampado na face daquela legião de concursados, aprovados em exame vestibular tão disputado, de alta complexidade, além dos inúmeros psicotestes e exames médicos para confirmação das capacidades mental e física de todos. Todavia, minha maior preocupação residia no fato que eu estava quasi liso, como também acontecia com outros três colegas: o Gilson, o Afonso e o Amorim. Contávamos com a ajuda de custos que deveríamos receber da Petrobrás para a nossa devida instalação na capital da Bahia.

Por trás da preocupação que me perturbava, havia ainda uma dívida que já se arrastava há meses na mercearia do Chico, a qual decorria basicamente das cervejas que lá tomávamos e deixávamos penduradas a perder de vista, mas que sempre honrávamos com pagamento pleno, apenas com atraso, que o Chico compensava pelo aumento inexplicável do número de cervejas consumidas, o qual nunca conferíamos no final da bebedeira, até porque não tínhamos mais condições para tanto: ou estávamos ligeiramente ébrios ou fugíamos antes que o Antônio, empregado do Chico que nos atendia, apresentasse a despesa do dia da pendura, quase sempre cumprindo instruções do próprio Chico de não permitir que aumentássemos a conta, coisa que nunca honrávamos e que fazíamos questão de fugir sem ao menos conferir o total a ser somado à dívida pregressa naquele momento. O Chico se vingava sempre, coisa que nunca admitiu, jurando ser um comerciante honesto, amigo de todos; entretanto, seus fuxicos sempre foram o seu forte e serviam para nos deixar animados quando nos reuníamos ali para beber cerveja e jogar palitinhos. No fundo, o Chico era boa pessoa, respeitados os limites sócio-culturais vividos em seu estabelecimento comercial, sabidamente não muito bons.

E-mail: omartins@cpunet.com.br
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